sábado, 28 de agosto de 2010

Depois da parede

Havia mais de meia hora que eu fitava a parede do meu quarto e nela a janela, por onde eu via a paineira balançando ao ritmo do vento, a luz da Lua e o reflexo das luzes da rua que se misturavam criando e iluminando todo o quarto. O vento muito forte naquela noite criava ruídos interessantes que combinados pareciam uma sinfonia para ninar. Contudo, especialmente naquela noite, eu não conseguia dormir.

Olhei de relance para o relógio, que nunca está na hora certa, calculei a diferença para o horário que eu imaginava ser o certo e ainda nada do meu sono vir. Pensei em levantar, tomar uma água ou algo mais forte, quem sabe uma dose daquele uisque antigão que meu amigo me deu. Não, achei melhor ficar ali quietinho e tentar dormir. Lá pelas tantas percebo que a parede, que eu tanto fitava, estava se mexendo, parecia como tremendo, enfim, não sei. Muito estranho. Parecia que algo corria de cima para baixo e e vice-versa, para os lados e de lá para o centro. Maluco! Pensei, acho que to sonhando, aquilo não era possível. E a parede continuava ali (ainda bem, né), mas algo nela continuava a se mexer e aquilo começou a me preocupar.

Sem me levantar e meio na bobeira, arrisquei um gesto com a mão na tentativa de alcançar a parede, que, por um instante, parou de se mexer. Aquele ato me deixou completamente imóvel. Ao ficar quieto a parede voltou a se mexer. Tudo aquilo estava muito estranho e num ato de coragem resolvi encarar a bagaça. Me levantei com a intenção de conferir mais de perto e se eu estava sonhando ou acordado, ou tinha pirado de vez... rs. Sai da cama pelo lado contrário da janela - sim, não podia arriscar estar errado e a parede me atacar, já pensou... Que explicação eu teria: "a parede me atacou". Bem, lá fui eu pé ante pé em direção a parede que oscilava entre mexer mais lentamente e parar. Fui chegando e já bem próximo e ao tocá-la, fiquei chocado, supreso e aliviado, tudo ao mesmo tempo, porque não havia nada a tocar. A parede simplesmente não estava ali. No lugar uma cena de cinema sendo projetada onde era a parede e tudo o que eu via - a janela, paineira, vento e as luzes -não passavam imagens projetadas.

Estendi o braço e este ultrapassou o limite da projeção das imagens. Um passo a mais e subitamente, me vi fora do quarto ou além da parede, ou ainda, num lugar que se fosse real, não haveria nada e eu cairia de uma altura de três andares, direto no quintal do vizinho do térreo. Mas não, eu estava numa passagem que me levava para dentro de um galpão imenso, todo preto, com muitas vigas e colunas metálicas. Muitas luzes parecidas com aquelas de emergência que ficavam piscando. O lugar era imenso e o teto muito alto, eu não coseguia precisar a altura daquilo. De longe eu avistava um lugar que parecia ser o centro do tal galpão onde, como se fosse uma ilha bem clara no meio da escuridão se destacava. Ela ficava mais do que o lugar onde eu estava e tinha algo parecido como balcões. Ao chegar mais perto percebi que eram painéis cheios de botões e luzes coloridas que se alternavam entre acesas e apagadas. O tempo todo eu olhava em volta procurando para ver se havia alguém por perto e nada, não via ninguém. Arrisquei uns berros para chamar a atenção, coisa de caipira chamando o vizinho, mas fiquei com receio de estar dormindo e acordar a vizinhança com gritos na madrugada. Bem, ninguém apareceu nem ali no galpão e nem na porta do apartamento. Os sons do lugar pareciam aqueles de transformadores de energia ligados, como que um ruído bem baixo e permanente, e mais nada.

Aquela viagem já estava mais do que interessante e eu não sentia mais nem vontade de querer dormir. Queria mesmo é estar ali tentando descobrir o que podia ser tudo aquilo. Depois de me acostumar um pouco mais com o lugar decidi explorar aquela ilha, seus painéis e botões. Logo percebi que onde eu pisava, aliás, tudo à minha volta tinha um tipo de piso muito estranho que lembrava aquelas placas de aço cheias furos redondos e onduladas, sempre num tom que alternava entre o preto e o cinza escovado, e que não refletiam a luz. Não havia degraus e sim rampas, muitas. No centro havia algo como uma coluna cilindrica enorme, uns quatro metros de diâmetro, e muito alta que parecia ir além do teto. Mais de perto, notei que as tais luzes vinham de números e letras, que formavam diferentes sequências, e que estava em todos os painéis. Aquilo me parecia uma área de controle sem nenhum operador, tudo funcionava sozinho. Numa de minhas andanças entorno daqueles painéis me deparei com umas colunas de mais ou menos um metro e meio de altura e no alto delas um conjunto luzes, botões e sinais. Não havia nada escrito, bem, quer dizer, nada que eu entendesse pelo menos, e nada do tipo "não toque em nada", ri com meus botões... Arteiro como sempre, toquei no tal painel e um ruído ensurdecedor ecoou por todo o lugar. Gelei!!! Fiz besteira, pensei. O barulho logo silenciou. Me abaixei e procurei para ver se alguém aparecia, enfim, ninguém apareceu, ufa!

Mexi novamente e mais uma vez, e os barulhos foram rolando com tons diferentes. Gostei da brincadeira e comecei a fuçar em tudo por ali até que, por um motivo que não sei dizer e nem me lembro, ativei alguma coisa que fez com que uma luz que vinha do alto daquele galpão e descia exatamente naquele cilindro se intensificasse. Uma luz muito branca que doía meus olhos de tanta luz.

Já bem mais corajoso, me aproximei da tal luz que curiosamente não se comportava como outras luzes que eu conhecia, isto é, aquelas que a gente acende e apaga, etc. Não, aquela não fazia isso, ela se movia de lado, entortava, se curvava, como que feita de muitas luzes individuais, com vida própria. Ora elas formavam a minha imagem, ora mudavam as partes da minha imagem de posição, criando coisas muito diferentes e até divertidas. Fiquei encantado com aquele jogo de luzes e pensei que coisa maravilhosa estava acontecendo comigo naquela noite. Primeiro a parede do meu quarto se mexendo, depois atravesso a parede e cá estou nesse local incrível para logo depois estar com estas luzes lindas, criativas e geniais. Muito encantado, não aguentei e resolvi tocá-las, senti-las. Me aproximei muito devagar e com a coragem meio pronta pra me fazer correr dali, até porque, vai que a coisa toda vira do avesso e degringola.

Ao estender meu braço percebi uma força enorme que me envolvia e me puxava em sua direção. Aquela sensação me fez assustado e buscar opções para escapar dali e voltar para a parede, para a minha cama, enfim, acordar, não sei. Olhei em volta buscando um caminho e além daquelas luzes tudo estava um breu, não se via nada, só mesmo as luzes e aquele cilindro imenso que as jogava para cima ou as trazia de lá, não sei. Sem ter pra onde correr decidi ir adiante, era tudo ou nada.

Um formigamento começou pela minha mão e logo tomou todo o braço. Eu o sentia preso ou seguro por alguém. Daí as luzes envolveram minhas pernas e logo todo o meu corpo formigava. Tentei gritar e minha voz, que ali se parecia com a do Pato Donald, nem saía. Depois de alguns minutos não sentia mais o peso do meu corpo. Parecia que eu estava flutuando, como algo muito leve. A preocupação deu lugar a um prazer indescritível que me tranquilizava - eu estava gostando de tudo aquilo. Me movia livremente em direção às luzes e estas vinham ao meu encontro. Eu sentia meu corpo, mas não o via.

Após algum tempo, aquela euforia e prazer deu lugar a muita tensão e preocupação poque as luzes começaram a mudar cor muito rapidamente, quase que freneticamente. Algo estava acontecendo com aquele lugar porque o ruído que eu causara no início recomeçou a ecoar de maneira ainda mais estridente, e alternando estrondos que pareciam explosões de uma luz intensa e som muito alto.

Uma dessas explosões me acertou em cheio e fui arremessado para cima a uma velocidade incrível, em direção ao teto, só que este nunca chegava, isto é, eu não parava mais de subir e eu estava cada vez mais alto e rápido, quando, de repente, como num abrir de olhos, parei e me vi ali, fitando a parede do meu quarto, a janela, a paineira que ainda balançava ao ritmo do vento e a luz da Lua.

Não sei se acordei de um sonho ou se sonhei acordado. Se saí dali ou nada daquilo tudo não passou de um pesadelo, sonho, estresse... não sei. Tudo aquilo me deixou meio atordoado e tentando entender, olhei pro lado... vixe, vou perder a hora.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A moça e a passagem

Certa manhã eu caminhava sossegado por uma avenida que fica muito perto de onde eu moro. Era bem cedo e o sol demorava a vencer a densa neblina que cobria todo o vale. Um friozinho, ainda que gostoso, mantinha meus pés duros, enrijecidos, parecia que eu tinha cubos de gelo no lugar dos pés. Depois de alguns minutos senti que eles aqueceram e o ritmo já melhorou, pude caminhar com mais desenvoltura. Olhava aquela paisagem toda encoberta, como se eu estivesse andando em meio a nuvens e pensava nas coisas que tinha de fazer durante o dia. Ao cruzar a ponte, percebi que a neblina desceu repentinamente a ponto de enxergar mais nada. Mal se podia dividir entre as águas do rio, a murada da ponte e cidade.

Eu conhecia bem aquele caminho, nunca tinha visto algo como aquilo ali e mesmo estranhando esse fato continuei caminhando. Um pouco mais a frente, ainda na ponte, notei um conjunto de luzes que escapava pela neblina e vinha de um buraco que havia na murada. Fiquei intrigado de novo porque até poucos minutos atrás, aliás, não me lembrava que havia qualquer buraco na murada. Muito estranho. A curiosidade me pegou. Quando me aproximei da murada para tentar localizar de onde vinham as luzes atinei para um fato que me deixou espantado, eu estava sozinho naquele lugar. Não via nem ouvia mais os carros passando, eu não escutava mais as conversas entre outros transeuntes, nada, nenhum barulho. Alguma coisa de muito maluca estava acontecendo naquele momento porque não se ouvia a água correndo no rio, tão pouco qualquer grunhido dos pássaros tão comuns ali, naquela área.

Minha teimosia se juntou a curiosidade e tomado de um pouco de coragem lá fui procurar saber o que estava acontecendo. Apoiando-me na murada, que parecia estar quebrada, enfim, segurando-me onde dava, escorreguei minhas pernas pela passagem com um medo danado de que eu caísse no rio, afinal, até então eu estava em cima da ponte e por sobre um rio, de repente, toquei em chão firme. Foi uma sensação muito estranha. Pensei – Cadê o rio? Meu pé tocou o chão seco e já que eu tinha chegado até ali decidi continuar e seguir aquelas luzes para ver o que de fato havia ali ou o que estava acontecendo. Como eram muitas luzes pensei que podia ser uma cidade ou vilarejo, enfim, não sabia ao certo, mas queria saber.

Depois de vários minutos me vi parado diante de algo que se parecia com uma vila cheia de casinhas, algum comércio e muitas luzes, que vinham das construções porque não tinha luz na rua. Bem, pelo menos não naquela rua em que eu chegara não tinha. Olhei em volta e percebi algumas pessoas conversando, umas falando mais que outras, e ao notarem a minha presença, pararam abruptamente. Um silêncio terrível se fez presente. Se viraram e de maneira muito suspeita, vieram em minha direção. Fiquei imóvel, afinal eu havia seguido as luzes e chegado até ali. Não achava que tinha feito algo de errado, pensei. Uma dúvida me ocorreu - Será que eu deveria estar ali? Parecia que não mesmo, e o pior foi que me tornei um tremendo problema para eles.

Um frio correu pela minha espinha e comecei a ficar com medo, sério, bateu um medão. Pensei – Fiz besteira, será que escapo dessa? Aquele pessoas, além de parecerem muito estranhas, estavam suspeitando que eu fosse aprontar alguma coisa ali, sei lá o quê, nem deu tempo de perguntar. Eles foram logo me cercando e sem que eu pudesse esboçar qualquer reação, começaram a me mandar embora, gesticulando e gritando que eu não deveria estar ali, que ali não era o meu lugar e coisa e tal. O mais curioso desse momento é que eu não entendia as palavras que eles falavam, mas entendia tudo o que eles estavam querendo dizer. Louco isso não! Nem precisava de tradução. A coisa estava cada vez mais quente e eu não tinha a menor ideia de como sair dali. Eu olhava para trás e não via a ponte, rio, nada, tudo era muito estranho e diferente do lugar que eu imaginava estar. Esse outro lugar, aparentemente, era muito longe de onde deveria estar ou estava antes. Mesmo sem entender lufas o que aquele povo dizia, senti que ia me dar mal.

Isso já estava quase acontecendo quando, num momento que não sei precisar. Sei lá, acho que fechei os olhos e quando os abri todos haviam desaparecido. No lugar deles uma moça muito bonita, veio em minha direção. Ela parecia um anjo, tinha os olhos muito verdes, um olhar manso, delicado, meigo e um sorriso que me acalmava. Sem pronunciar uma palavra se quer, ela pegou minha mão e foi me levando pelos caminhos ainda encobertos pela neblina em direção à ponte.

Durante o trajeto, pensei em perguntar-lhe sobre o que tinha acontecido e mais, quem era ela e o por que dela estar me ajudando. Acabei não fazendo tais perguntas, e mesmo assim, senti como se ela me respondesse, dizendo que embora eu não devesse estar ali nós iríamos nos encontrar de qualquer maneira. Essa frase me deixou ainda mais confuso.

Chegamos na ponte, segurei a mão dela, me despedi e uma tristeza me abateu. Não queria ir embora, mas ela insistiu que eu partisse. Pus-me a subir pelo caminho de volta e quando olhei para trás – para a despedida, também não havia mais nada. Ela tinha sumido, aliás, tudo tinha desaparecido e mais, parecia que nada havia acontecido. O rio límpido correndo por sob a ponte, as pessoas caminhando, o sol brilhava forte e nem sinal da neblina que encobrira tudo à minha volta. Todos os ruídos e sons voltaram de estalo. Diante de tal sensação e muitas dúvidas, eu me perguntava: Onde eu tinha estado? O que havia acontecido comigo? Quem eram aquelas pessoas e quem era ela? Muitas lembranças daquele acontecimento que ficaram marcadas desde o medo que senti até o carinhoso olhar daquela moça que cuidou de mim.

Saí muitas outras manhãs para caminhar por aquela ponte e fiquei parado ali por horas, tentando entender e achar outra vez a passagem. No interior costumam dizer que é possível se pegar um saci com uma peneira no redemoinho de vento, que as rajadas de vento trazem presságios e o balançar sincronizado das árvores pode mostrar caminhos misteriosos, portais do tempo, passagens, enfim, caminhos capazes de nos levar para outras dimensões.

Não sei quanto tempo levará, mas outro dia com muita neblina há de vir e talvez eu seja levado a reencontrar o caminho para aquela moça linda, com olhos verdes e que tanto sonho até hoje.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A viagem que começou agora

Mudamos o tempo todo de lugar ou, pelo menos, do momento em que estamos no mesmo lugar. Às vezes fico imaginando como seria interessante desaparecer do lugar onde me encontro e aparecer num outro melhor, como no filme Jornada nas Estrelas ou em outros em que grandes portais se abrem para diferentes lugares e dimensões, filmes como Star Gate 1 e Deep Space Nine. Num estalar de dedos, ou melhor, apertando um botão você poderia ter seu corpo desmaterializado num lugar e rematerializado em outro, conforme o destino proposto. Há filmes em que as personagens entram andando de um lado do portal de gelatina e saem no meio de uma exuberante selva com seus phasers prontos para serem disparados porque, claro, sempre há um inimigo à espreita, coisa de filme.

Quem não gostaria de literalmente sumir de um lugar chato e incômodo para ir a outro de seu agrado, num piscar de olhos? Eu gostaria e muito, aliás, estava aqui pensando e já escolhi alguns lugares para onde iria imediatamente. Imagine – é finalzinho de tarde, você querendo tomar uma cerveja, aperta um botão que aciona uma maquininha que faz aquele barulhinho, várias luzes brilham e shazan! Você está junto de sua turma ali no bar "Distinta Freguesia", um dos preferidos da minha turma. Claro, há outras formas de viagem também, mas esta seria bem rápida, não!

Na série "Túnel do Tempo", da década de 60, dois viajantes vão de época em época, descobrindo coisas, mexendo com a história e sempre tentando voltar pra casa. No filme "Contato", a atriz Jodie Foster está viajando em uma máquina criada conforme as orientações recebidas de povos avançados do universo para que a humanidade conheça o universo, outros povos, enfim, no final dá tudo errado e ninguém acredita nela, afinal, ela ficou só 18 segundos na máquina. A base científica de todos esses filmes e dos artefatos, mecanismos e máquinas imaginadas, inclusive as citadas e outras, são teorias desenvolvidas por eminentes cientistas que ao longo de várias épocas, entre eles Albert Einstein, veem demonstrando que o universo guarda importantes lições sobre caminhos, passagens, "buracos de minhoca" e dobras espaciais para serem descobertas, desbravadas e curtidas pelas gerações vindouras.

Considerando que a brincadeira e arte sempre imitaram a vida, talvez um dia desses seja a vida que estará imitando a brincadeira e a arte, e meus bisnetos ou ainda tataranetos estarão cruzando o universo à velocidade da luz, saltando as dobras espaciais, como quem pula a amarelinha. Seja como for, acredito que cedo ou tarde isso vai se tornar realidade, inclusive porque essa possibilidade já foi prevista. Enquanto não conseguimos, como diria o Capitão Kirk – ir onde nenhum homem jamais esteve – vou viajando a lugares maravilhosos, alguns inéditos pra mim e outros que considero uma gostosa segunda chance para aprender, experimentar, fazer contatos e, na volta pra casa, recordar, viajar no imaginário, sonhar e contar a história daquela viagem.

Acredito que no momento em que usamos nossa imaginação experimentamos viagens, novas experiências e sensações que podem ser reinventadas a todo instante para, sempre que possível, contadas em rodas de prosa, na mesa do bar ou guardadas na lembrança e curtidas sozinho no canto. Bem, optei por escrevê-las na forma pequenos contos, como histórias de viagens um tanto estranhas e fantásticas que experimentei e desejo de revivê-las contando-as. As primeiras são “A moça e a vila” e “Depois da parede”.

Não sei quanto tempo levarei para contar outras, mas como ouvi de um bom amigo – o tempo disse pro tempo, quanto tempo o tempo tinha, este respondeu que com tempo sempre haveria tempo. Assim, vou sem pressa, no meu tempo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Rolimãs na esquina das ruas Albion e Guaricanga.

A aventura de dirigir vem comigo desde muito tempo. Tive uma infância ótima com muito tempo de brincar na rua sem qualquer tipo de perigo, exceto quebrar uma janela ou um dente, enfim, desde pequeno gosto de brincar, principalmente de bicicleta, tico-tico, triciclo e carrinhos de rolimãs, entre outros, pois minha vida foi marcada por muitas viagens sobre rodas. Tive até um carrinho a pedal, muito bacana, que eu e meu irmão Marinho (o de cabelo claro na foto abaixo) dividíamos.

De rolimã era uma farra, descíamos a Rua Albion, antiga rota para o interior do Estado, até a criação das marginais, e virávamos na esquina da Rua Guaricanga, tudo isso na Lapa, bairro da zona oeste de São Paulo que eu sempre amei e onde passei toda a minha infância, e também onde ficava, ali, bem na esquina, o Empório São Jorge, um empório daqueles que vendiam arroz, feijão, batata, tudo a granel, naquelas sacas de tecido, bem como leite em garrafa de vidro, que chegavam cedinho naqueles engradados de metal. Lá tinha uma vitrine de doces maravilhosos e eu pegava sem meu avô perceber, quer dizer, eu achava que ele não sabia, o "alpino" e o "doce de abóbora". Era o empório do meu avô, Mario Ismael Assan, aliás, o nome dele original era Amar Ismael Assan, e minha avó, Albina Gir Assan. Que saudade!

Bem, aquela curva era radical porque o poste de luz ficava bem depois da esquina, do lado esquerdo da curva, e logo depois, poucos metros à frente, ficava a escada da casa do vizinho. Ali na Lapa ainda têm muitas dessas casas, cujas portas ficam muito mais alta que o nível da rua, por medo das enxurradas, talvez, que desciam lá da Rua Barão de Jundiaí e se encontravam com outras águas vindas da descida Albion.

O objetivo das nossas descidas era fazer a curva sem nos arrebentar no poste ou na escada, que ocupava metade da calçada, bem como não se perder da calçada e ir parar na rua, correndo o risco de ser atropelado, ou de atropelar algum cliente do meu avô ou algum vizinho, afinal, eu morava ali na Rua Guaricanga, número 345, bem no meio do quarteirão, aliás, essa rua tinha seis quarteirões de comprimento e o nosso era o único totalmente plano. Palco de peladas e muitas outras brincadeiras, toda a criançada da rua vinha se encontrar ali.

Quase sempre conseguíamos fazer aquela curva, mas muitas vezes os cotovelos e joelhos sofriam pela inabilidade. Os ralados doíam, mas era tudo de bom, RS! Esqueci, um pouco antes da curva, ainda na Rua Albion, ficava a escada para a porta de entrada da casa da minha avó. Quantos obstáculos nós tínhamos que considerar naquele rali para vencer a esquina. Normalmente estávamos em dupla, isto é, um ficava na esquina e dava o sinal para que o outro descesse. Dado o sinal o problema era parar caso, durante a descida, algo surgisse e precisássemos brecar... Já era! O breque era no pé mesmo, ou melhor, no “bamba” e não tinha outro jeito, o jeito era conseguir ralando a sola do tênis ou se arrebentar no poste, as vezes os dois.

Era uma delícia. Puxa, faz um tempão que não ando de carrinho de rolimãs. Depois vieram os skates, mas eu já estava com outras rodinhas nos pés. Hoje em dia divido meu tempo entre as rodinhas motorizadas e no pedal. Bem, esta última já vem comigo também há bastante tempo, mas essa história outro dia eu conto.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Pai, existência e legado.

Desde pouco tempo antes da morte do meu pai, penso na sua existência e legado, e como isso fez com que eu mudasse meu comportamento em relação aos meus filhos, mãe, irmãos e a própria vida. Muito longe de ter sido um mau filho, do meu lado, ou um mau pai, do lado dele – muito pelo contrário – éramos bons amigos, só que brigávamos sempre pelos mesmos motivos. Nossas diferenças de opinião combinadas com nossa natureza ou ancestralidade italiana tornava nossa relação um caso de combustão automática.

Ao pensar em tempos muito antes daqueles, lembro que desde adolescente, eu e meu pai tínhamos um tipo de relação que oscilava entre o confronto e a união. Por muito pouco surgia uma discussão que acabava de maneira crítica – se porque o meu cabelo estava comprido eu deveria cortá-lo. Se porque ele ficava se metendo com o meu cabelo comprido – Eu não gostava do modo como ele conduzia as conversas depois que chegava da rua. O efeito do álcool incomodava demais a mim, minha mãe e irmãos, mas eu acabava recebendo o maior impacto disso porque sempre me intrometia entre eles, ele e ela, durante suas discussões.

Amava meu pai, mas vivia em péd de guerra com ele o tempo todo. Esse sentimento contraditório nos acompanhou por muitos anos. E mesmo depois de eu estar casado, com meus filhos e circulando pelas muitas regiões do Estado de São Paulo, onde trabalhava pelo SESC, exercendo aquela profissão que ele era categoricamente contra, ainda assim nós nos encontrávamos sempre entre momentos de guerra e paz. Os netos em casa a exigir ações mais abertas de todos acabaram por mexer com o comportamento do meu pai, lapidando-o e tornando-o mais suscetível aos novos tempos, jeitos de agir, comportamentos mais diferenciados.

Ao final e ao cabo, eu e meu pai nos entendemos. A doença que lhe tomou o corpo precipitou o nosso entendimento. De meu lado, a ausência possível dele e minha noção de rebeldia ou de frustração por antigas divergências mal resolvidas perdeu força e deu lugar a um desejo enorme de conciliação. O último entrevero entre nós, e mais radical, abriu uma vala tão funda e larga que só a parada imediata e o recuo de ambos possibilitou consertar o estrago feito.

Mas o tempo foi determinante e nos ajudou a recuar, nos fazendo sentar à mesa para acertar nossas arestas, as diferenças, conhecer um pouco mais sobre nossos pontos de vista, nossos projetos, ideias e visões de mundo, bem como as visões um do outro e vice-versa. Acho que isso aconteceu pouco antes da Páscoa de 2005, e daquele momento em diante, eu e meu pai abandonamos as armas e nos encontramos definitivamente em paz um com o outro.

A sensação de alívio e prazer de ambos os lados só foram escurecidas pelo agravamento dos sintomas que as doenças e outros problemas que ele tinha e que fizeram com que sua vida se esvaísse muito mais rapidamente a cada momento. Pouco tempo antes de sua morte, já no leito do hospital, um desabafo me fez cair na real e amadurecer, disse ele com o olhar vidrado e triste – João, estou cansado.

Minhas orações tornaram-se mais frequentes e nossas conversas mais intensas com ele, e de outro lado, indiretamente, comecei a preparar os outros para algo que estava certo ia acontecer e era necessário, pois meu pai precisava descansar. Era preciso entender e aceitar que ele precisava seguir adiante, sair daquele sofrimento que o mutilava, impedia, dividia, separava. Por mais unidos que estivéssemos a hora de nos separarmos estava chegando.

Sua passagem se deu em novembro de 2005, dia 7, e sua partida deixou para mim, e tenho certeza que para a minha mãe, irmãos, netos e para aqueles que o conheceram também, para além da tristeza da separação, um legado de amizade, respeito, honestidade e uma determinação enorme de viver.

Pensar nele e reverenciá-lo é honrar sua existência e legado. É por em prática na vida com meus filhos tudo aquilo que aprendi e depreendi durante o tempo em que convivi com o meu pai e com sua lembrança.

Salve meu pai.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Dilemas sobre o amor










Tristezas me abordam pela terra.
Alegrias vêm pelo ar.
A saudade me revigora sempre.
Sentimentos em polvorosa.

Dilemas sobre o amor.
Se verdadeiro, irreal ou surreal, não sei.
Pouco importa.
Pura razão e emoção.

Intensidade e sinceridade.
Aromas que arrebatam.
Espírito que voa longe e alto.
Essência que me acolhe e envolve.

Coração em paz.
Sorriso de criança.
Olhar que encanta.
Desejo.

Sem consentimento.
Tão pouco a presença.
Paixão que consome.
Amor.

sábado, 3 de julho de 2010

O umbigo e a tolerância

Olho pro meu umbigo, vejo a pele retorcida e puxada pra dentro, ou melhor, parece que vem de dentro pra fora. Não sei bem, mas o sinto como um caminho às entranhas do meu corpo,. Um caminho que percorri sem ser o que sou hoje e por onde passaram os ingredientes que ajudaram para que eu me tornar-se o que sou. Ao olhar meu umbigo, enxergo a minha origem, o fio condutor, a força interior, que contrasta com o reflexo daquilo que penso que sou. Um reflexo que muitas vezes esconde ou mostra (quando queremos ver, claro) o que realmente somos, desejamos, enfim, nossa essência.

É incrível como frequentemente esquecemos nossos defeitos e imputamos culpas, julgamos, humilhamos, externamos nossos ranços, distribuímos nossas mazelas e tantas outras porcarias que descarregamos sobre os ombros de outros. Nunca gostei dessa atitude que, vez por outra, penso que cometo e bate uma crise de consciência danada; fico chateado por ter sido grosseiro, mal educado ou simplesmente, por ter ignorado ou desrespeitado alguém.

Admiro e pratico a tolerância. Quando me esqueço dela e percebo isso, padeço.

Em um mundo afetado pela intolerância, desigualdade, injustiça e cada vez mais desumano, é fundamental estar atento aos próprios limites, atos, responsabilidades e sempre (sempre mesmo), devemos nos colocar no lugar do outro no momento que precisamos tomar uma decisão ou atitude que envolva diferentes vontades, interesses e individualidades.

Ao mesmo tempo, a estupidez humana mexe com minhas entranhas ao ponto de xingar mesmo; botar a boca no trombone pra ver se o fulano escuta e se manca, mas respiro fundo e sigo meu caminho quieto, por que sei que isso também é injusto, afinal, não tenho a menor ideia do que motivou tal atitude. Mas, que dá uma enorme vontade de resolver a questão ali isso dá. Pura perda de tempo. No final das contas, nem o tal fulano, eu mesmo ou outro qualquer tem o direito de ser estúpido com quer que seja. Temos que nos desarmar desde o primeiro instante e tolerar.

Mas é o seguinte: fecho o vidro e sem que ninguém me ouça, xingo pra caramba. Amanhã farei melhor!

terça-feira, 22 de junho de 2010

Teia de Sonhos

Enquanto a gente não se encontra,
sigo minha vida e
penso em ti o tempo todo.
Vou de sonho em sonho.

Enquanto a gente não se encontra
escrevo poemas e prosas,
penso em romances e
imagino nossos momentos juntos.

Enquanto a gente não se encontra,
espero por um lampejo de luz.
Por uma vela acesa ou
um sinal que seja.

Se é possível ao amor uma façanha,
é juntar corações e vidas inteiras,
pensamentos, desejos e palavras
numa teia de sonhos e realidade.

Enquanto a gente não se encontra,
envio sinais, desejo mais.
Sem esquecer das flores,
Me faltam seus aromas e sabores.

Enquanto espero, sonho.

domingo, 30 de maio de 2010

Sobre Amizades e Clipes

Diga-me o que representa um clipe para você?

Isso mesmo, é aquele objeto de metal que utilizamos para prender documentos uns aos outros, anotações a um papel, fotografias, enfim, usamos para guardar ou impedir que documentos e fotos ou outros papeis se percam. Uma espécie de suprassumo de organização. Quanto mais papel utilizamos mais clipes precisamos, e do seu concorrente também, o grampo de metal.

Numa analogia bacana, acredito que nas amizades acontece o mesmo, isto é, quanto mais amizades fazemos, mais clipes vamos usando para tê-las conosco. Como há amizades de todos os tipos temos a necessidade de clipes de diferentes tipos também. Se pudéssemos olhar aquelas pessoas que têm muitos amigos por uma lente tipo a visão de raios-X, veríamos elas cheias de clipes pelo corpo, cada um prendendo um papelzinho com os nomes ou fotos de seus amigos. Somos homens-clipes. Há muitas mulheres-clipes também!

Aqueles de poucos amigos, embora poucos, também seus clipes com as lembranças, imagens, notas, palavras, aromas, cheiros e lugares por onde passou. Os clipes nos mantém juntos mesmo que separados por diferentes razões, pelo tempo, por continentes, bairros, diferenças, enfim, a amizade, como os clipes que mantém juntos as coisas, mantém juntas as pessoas, que optam por curtir afinidades, alegrias, tristezas, novidades, lembranças, coisas comuns ou incomuns, com seus amigos.

Como as amizades, os clipes podem ser pequenos, coloridos, enferrujados, novos, velhos, grandes. Podem ser enganchados uns nos outros e formar uma corrente, como fazemos as nossas de amigos. Também podem ser usados para pendurar coisas ou ainda para prender a barra da calça.
Engraçado, acontece o mesmo com as amizades. Quantas vezes fazemos questão de segurar a barra de nossos amigos e outras tantas vezes, para não dizer sempre, cedemos nossos ombros para que se apóiem quando precisam, pois sabemos que cederão seus ombros para que possamos nos apoiar quando precisarmos.

Há ainda os clipes pequenos como algumas amizades; Os muito finos, os sofisticados e há os grandes e dourados; Há ainda aqueles que não seguram nada, estão tão desgastados que seu destino é servir para desobstruir algum buraquinho entupido e mesmo assim, acabam prestando alguma ajuda. Tenho certeza que há muitas outras utilidades para os clipes, assim como tenho certeza da infinidade de valores que as amizades nos proporcionam.

Não consigo nem imaginar quantas amizades eu tenho, mas sei que são muitas e todas muito importantes. Eu as carrego sempre comigo, o tempo todo, sutilmente presas a mim por clipes pequenos, leves e bem delicados para que nada as estrague, rasure ou ofenda. Vão a todo o canto comigo e me ajudam a fazer cada vez melhor as marcas nessa viagem chamada minha vida.

João Gambini

sábado, 22 de maio de 2010

Fechado para balanço



Uma amiga, por conta de tantos afazeres, titulou sua página do orkut, certa vez, com a seguinte frase: "fechada para balanço". Essa ideia ficou matutando em minha mente um tempão até que, de tanto irrequieto com o tema, pensei, puts, também tenho muitos momentos em que gostaria de fechar um tempo pra balanço, pra fazer ou não fazer nada. Parece o mesmo que dizer "para o mundo que eu quero descer", mas é diferente, não é uma necessidade de largar a mão de tudo porque se está com o "saco cheio", ou com a paciência esgotada, estressado, enfim, "se encheu". Não é disso que falo, falo da necessidade de se concentrar em uma ou outra coisa por um tempo prolongado e sem que o mundo cobre a sua parte de exclusividade sobre o meu tempo.

Penso nisso como um desejo pessoal muito forte e arrisco dizer que todos nós desejamos muito isso. Quantos não gostariam de poder ficar um pouco isolado do dia a dia para fazer o que mais gostam e sem ter que prestar conta desse tempo, ou ainda, para não fazer nada, ou refletir quieto e sem debates... Enfim, quanto mais o reflito sobre o assunto mais aumenta o meu desejo de arrumar um jeito de parar e dizer "peraí, preciso pensar melhor sobre o assunto".

Já parei muitas vezes e fui tomar um cafezinho com a ideia de clarear a mente. Mas fechar pra balanço, de fato eu ainda não fiz isso. Durante minha pós-graduação abdiquei vários dias de namorar e deixei de trabalhar três dias para terminar o meu TCC. Na época fui atrevido porque a vida que nos margeia não dá tempo e as pessoas têm expectativas difíceis de ser atendidas, principalmente quando estamos numa outra direção. Enfim, o que é pra ser um simples "peraí, já volto" transforma-se rapidamente numa guerra de justificativas e estranhamentos. A verdade é que ninguém gosta de ser preterido, por mais que isso não aconteça o tempo todo.

Dessas experiências, o sentimento que ficou gravado em meus hábitos foi que eu preciso sempre de uma parada. Um tempo do tipo "me deixa quieto um pouco" para terminar aquelas coisas que comecei que tenho enrolado para finalizar. Um momento mais introspectivo ou de concentração que não precise de assessoria externa, tão pouco a necessidade de explicar os porquês disso ou daquilo. Acredito que esses momentos "comigo mesmo" ou "para cuidar das minhas coisas" são pontos chaves ou essenciais para a valorização e manutenção da minha individualidade.

Tenho amigos que têm outras formas de fazer isso. Eles não param nunca e simplesmente vão realizando "as coisas do jeito que elas se apresentam, isto é, do jeito que veem, se resolvem".

Outros são mais radicais e se envolvem em grandes projetos com a intenção de conhecer a si mesmo, como fazer longas peregrinações, semanas de imersão em outras culturas ou retiros espirituais, treinamentos na selva, enfim, há muitas maneiras de se buscar entender o nosso mundo interior, o self, se entender, até para, talvez, compreender melhor o entorno, o mundo e os outros. Mas acho que estes mais param para fazer outras coisas que os levarão a conhecer-se melhor, diferente um pouco daquilo que falo. Talvez os resultados para cada um de nós sejam similares.

No caso da minha amiga, ela não queria se desconectar do mundo, bem, penso que foi isso, penso que ela só queria que seu mundo a compreendesse e desse um "tempo", caso ela não respondesse rapidamente. Acho que existem milhares de exemplos como o dela nesse mundo. A todo o momento nossas necessidades são suplantadas pelas demandas do mundo e nos vemos acuados pedindo "socorro" por um tempo para nós mesmos.

Às vezes penso que sou altruísta demais, eu ainda não consigo me concentrar tanto em mim assim, preciso rever isso! Treinar mais, quem sabe!

João Gambini

quarta-feira, 24 de março de 2010

O essencial faz a vida valer a pena

Embora eu não seja um fan desses brinquedos radicais de parques de diversões, como montanha-russa e tantos outros com nomes diferentes, cada vez mais percebo que eles parecem imitar ou representar a vida.

Com começo e fim certos, o tempo de diversão é definido pelo operador. As curvas de noventa graus pra direita e para a esquerda, subidas íngremes e lentas, as descidas vertiginosas e rápidas, os loopings, piruetas, parafusos, enfim, todos esses movimentos me lembram as situações do dia a dia e seus obstáculos, surpresas, encontros, imagens e pessoas que aparecem e somem, medos, risadas, gritos, tensão e outros tantos sentimentos, sensações e por aí vai.

O curioso nessa brincadeira é que cada um de nós vivencia, muitas vezes, o mesmo trilho ou carrinho, só que de maneira distinta. Uns gritam enquanto outros riem, ou ainda enquanto outros fecham os olhos, tudo no mesmo trilho. Às vezes combinamos mesmo e gritamos juntos. O operador é o mesmo, mas a percepção do tempo é diferente para cada um de nós.

Uns acham que a viagem foi muito rápida, outros que foi demorada, ou enfadonha, chata. Outros ainda querem mais porque acham que uma vez é pouco. Outros não querem nem pensar em repetir. Aliás, para o mundo que eu quero descer. Vencida a barreira dos cinquenta anos, sinto que meu respeito pelo operador continua ainda muito alto, mas o respeito pela vivência tornou-se a coisa mais importante pra mim. Tornou-se essencial.

Isto é, independente do tempo que me for dado, vou me divertir muito e de maneira ainda mais intensa. Quero perceber cada pedacinho ou trecho do caminho, com suas cores, sons, gestos e sentimentos.

Parafraseando Mário de Andrade, "o essencial faz a vida valer a pena" e vocês, caros amigos, são essenciais na minha vida.

Beijo no coração de todos.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Saúde Mental

Recebi uma apresentação em ppt de um amigo e acabei buscando o texto para postar aqui, com os devidos créditos. É texto de Rubens Alves.

"Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos. Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, bastar fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.

Pensar é uma coisa muito perigosa... Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse estresse ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas. Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio". O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades " espirituais"-símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes. Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo,é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus dias. Opte por um software modesto.

Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago?

Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato. Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal.

Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram."

Rubens Alves

Loucos e Santos

Recebi este texto de uma amiga e ele simplesmente traduz a forma como escolho meus amigos, louco isso não...

"Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco.

Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.

Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril."

Oscar Wilde