domingo, 28 de dezembro de 2014

Cicatrizes de uma alma em forma

Entre o desejo de viver bem, conseguir realizar sonhos, conquistar espaço para impor um jeito próprio de ser, enfim, entre o geral e o detalhe de cada momento de nossa vida vivemos realidades e ilusões; desejos, vontades e projetos. Vivemos a mercê de nossos embalos e entendimentos. Talvez, nem tanto entendimento assim, mas certamente deixamos que nossas vontades embalem e que nos causem frustração para eventualmente nos sentirmos vítimas do destino.
Aliás, este destino e seus muitos destinos possíveis nos atormentam por vezes em nossas caminhanças. São horas e mais horas vivendo na expectativa de que o nosso destino seja bom. Uma grande perda de tempo. O melhor mesmo é correr atrás e fazer por onde para que o que se deseja possa ser concretizado. Ficar esperando um golpe do destino que nos coloque em vantagem para conquistar o mundo é no mínimo uma grande fantasia e total ilusão. Está certo, pode ser que um desejo ou sonho, ou mesmo uma ilusão acabe por tornar-se realidade, ótimo, mas o fato mais recorrente ainda é que a vida não é assim.
Ela é resultado de muita soma e multiplicação, divisão e subtração. A vida é fruto da ação. Fruto de como se pensa a vida, se projeta viver e se vive. Em outras palavras, fruto da força interior de cada um (Acredito nisso). Claro que nada disso ou até tudo isso pode ser ou não verdade, afinal, há tantos fatos isolados que parecem coincidir com essas afirmações e até os resultados se mostram alinhados.
Viver é navegar por um emaranhado de frustrações, expectativas, desejos, vontades, conquistas, derrotas, tentativas e experimentações. Se a expectativa de que algo aconteça ou dê certo é baixa ou mesmo alta, a possibilidade é sempre grande de que sua não realização torne-se uma frustração ou um abalo na própria expectativa. Nesses já cinquenta e sete anos de vida vivi dezenas de derrotas, frustrações, desilusões, conquistas e vitórias. Muitas mesmo. Acho que perdi a conta dos resultados negativos ou ruins, mas sinto que acabei forjado por esses resultados, de maneira que meu espírito com foco positivo, otimista e empreendedor não se abateu diante de toda a pressão gerada pelos percalços e ao contrário, fortaleceu-se, armazenou mais energia positiva e criou uma pele resistente aos atritos e abrasões provocados pelos desgastes que a vida proporcionou.
Diferente de uma espada que é submetida à bigorna pelo ferreiro para ganhar dureza, leveza e resistência, minha alma foi forjada pelo peso do martelo para ganhar forma, estrutura, resistência e maleabilidade. O banho frio e o fogo da brasa legaram memória aos elementos de  que sou feito para que, independente do tamanho da pressão que receba, suas retas e curvas sempre voltarão à forma original. Esses elementos dão consistência ao meu ser, tornando-me maleável, flexível e resistente às pressões mais pesadas e persistentes. Acredito que o peso das frustrações e recuperações recorrentes foram mais benéficas para meu crescimento do que as vitórias incontestes.
O desejo do viver bem e realizar sonhos nos levam para o amanhã que chega com o despertar de um novo dia. Nesse embalo, novos desejos e planos a serem realizados porque essa é a minha natureza. Sou assim. Gosto do risco de sonhar e planejar meu dia e minha vida. As eventuais frustrações não me detêm. Busco a sensação de controle sem abrir mão do risco do descontrole, principalmente porque sei que ao final do dia, talvez muitas daquelas coisas desejadas e planejadas (ou todas elas) terão sido em vão ou não terão acontecido. Algumas serão acertadas e outras não. Ao final serão fatos e questões que não afetarão minha alma porque as cicatrizes anteriores tornaram-na mais resistente a tais riscos e acontecimentos. Uma alma em forma e treinada por um personal trainer fortíssimo, a vida.
Ao deitar quero a sensação de ter tentado; ter ido fundo em busca do meu desejo; ter caminhado na direção escolhida; e ter gozado de satisfação por perceber-me vivo e afinado com meus desejos mais íntimos de viver uma boa vida.

O dia seguinte sempre vem, mas gosto de dar uma empurradinha.

João Gambini
26/12/2014

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Desequilíbrio tênue



Enquanto o surfista olha o movimento das ondas e espera aquela que vai levá-lo em sua crista efervescendo sua adrenalina em um desequilíbrio tênue entre a segurança da experiência vivida e a aventura do novo, único e momentâneo, na praia, a mãe sente medo pelo mar bravio e ruidoso que despertou depois da calmaria dos dias anteriores e não deixa o menino ir além da segunda “ondinha” porque ela sabe que por ali ronda uma correnteza forte e contrária, que pode derrubá-lo e arrastá-lo mar à dentro e para longe dela.

Atento, o guarda-vidas, que havia saído de uma balada irada e dormido muito pouco, nem boceja diante da violência que a tempestade da noite anterior impôs às ondas, e observa com seus olhos esbugalhados de sono a mãe, o menino e o surfista. Em sua mente uma batalha feroz está sendo travada entre o desejo de se aventurar nas ondas que anima o menino e o surfista, e a mãe que estabeleceu o limite de seu medo na areia.

Essa cena, que parece tirada de um filme, acontece todos os dias em minha mente onde ora o surfista encara altas ondas no mar revolto, ora o mar está tão tranquilo que ele busca na cantoria na areia seu espaço para se divertir e brincar; ora a mãe protege o menino da correnteza, ora ela o leva para flutuar lá no “fundão”, apoiado em seus braços, para delírio do garoto não acostumado com o desafio de ficar onde seus pés não alcançam o fundo.

Enquanto o surfista prancha pelo tubo e toca a coluna d’água, seu coração dispara. De um instante para o outro sua existência transcende para além do mar e do céu. Nesse mesmo instante, o menino ergue-se na areia para defender seu castelo cheio de bandeiras e brasões das ondas que chegam; cava canais e muros, agita-se na esperança de que o mar entenda seu pedido e o deixe curtir sua felicidade por mais um tempo.

Enquanto cobre os olhos por causa do Sol, a mãe, de longe, observa o esforço do menino, lhe mostra a sacola com os brinquedos, protetor solar e guloseimas e que está ali se ele precisar. Ao mesmo tempo, do alto de sua cadeira, o guarda-vidas sonha acordado com o tempo em que surfava grandes ondas, brincava na areia e era cuidado pela sua mãe.

As circunstâncias, como as correntezas no mar, nos empurram, puxam, jogam, sacodem, afundam, geram tristeza e alegria, melancolia e euforia, confiança e apreensão. Elas nos lavam a alma e nos deixam mais leves para dançarmos juntos, nós e o mar, ao ritmo da mesma correnteza, numa mistura de aventura e medo, conhecimento e novidade, excesso e falta, grandiosidade e pequenez. 

Vivemos instantes simultâneos e singulares em que os desequilíbrios do agora logo se tornam reequilíbrios mais adiante, num exercício permanente para nos manter sobre a prancha ou para nos sentirmos mais seguros durante o balançar das ondas.

Seguimos nos equilibrando na vida.


João Gambini (maio 2014)