sábado, 28 de agosto de 2010

Depois da parede

Havia mais de meia hora que eu fitava a parede do meu quarto e nela a janela, por onde eu via a paineira balançando ao ritmo do vento, a luz da Lua e o reflexo das luzes da rua que se misturavam criando e iluminando todo o quarto. O vento muito forte naquela noite criava ruídos interessantes que combinados pareciam uma sinfonia para ninar. Contudo, especialmente naquela noite, eu não conseguia dormir.

Olhei de relance para o relógio, que nunca está na hora certa, calculei a diferença para o horário que eu imaginava ser o certo e ainda nada do meu sono vir. Pensei em levantar, tomar uma água ou algo mais forte, quem sabe uma dose daquele uisque antigão que meu amigo me deu. Não, achei melhor ficar ali quietinho e tentar dormir. Lá pelas tantas percebo que a parede, que eu tanto fitava, estava se mexendo, parecia como tremendo, enfim, não sei. Muito estranho. Parecia que algo corria de cima para baixo e e vice-versa, para os lados e de lá para o centro. Maluco! Pensei, acho que to sonhando, aquilo não era possível. E a parede continuava ali (ainda bem, né), mas algo nela continuava a se mexer e aquilo começou a me preocupar.

Sem me levantar e meio na bobeira, arrisquei um gesto com a mão na tentativa de alcançar a parede, que, por um instante, parou de se mexer. Aquele ato me deixou completamente imóvel. Ao ficar quieto a parede voltou a se mexer. Tudo aquilo estava muito estranho e num ato de coragem resolvi encarar a bagaça. Me levantei com a intenção de conferir mais de perto e se eu estava sonhando ou acordado, ou tinha pirado de vez... rs. Sai da cama pelo lado contrário da janela - sim, não podia arriscar estar errado e a parede me atacar, já pensou... Que explicação eu teria: "a parede me atacou". Bem, lá fui eu pé ante pé em direção a parede que oscilava entre mexer mais lentamente e parar. Fui chegando e já bem próximo e ao tocá-la, fiquei chocado, supreso e aliviado, tudo ao mesmo tempo, porque não havia nada a tocar. A parede simplesmente não estava ali. No lugar uma cena de cinema sendo projetada onde era a parede e tudo o que eu via - a janela, paineira, vento e as luzes -não passavam imagens projetadas.

Estendi o braço e este ultrapassou o limite da projeção das imagens. Um passo a mais e subitamente, me vi fora do quarto ou além da parede, ou ainda, num lugar que se fosse real, não haveria nada e eu cairia de uma altura de três andares, direto no quintal do vizinho do térreo. Mas não, eu estava numa passagem que me levava para dentro de um galpão imenso, todo preto, com muitas vigas e colunas metálicas. Muitas luzes parecidas com aquelas de emergência que ficavam piscando. O lugar era imenso e o teto muito alto, eu não coseguia precisar a altura daquilo. De longe eu avistava um lugar que parecia ser o centro do tal galpão onde, como se fosse uma ilha bem clara no meio da escuridão se destacava. Ela ficava mais do que o lugar onde eu estava e tinha algo parecido como balcões. Ao chegar mais perto percebi que eram painéis cheios de botões e luzes coloridas que se alternavam entre acesas e apagadas. O tempo todo eu olhava em volta procurando para ver se havia alguém por perto e nada, não via ninguém. Arrisquei uns berros para chamar a atenção, coisa de caipira chamando o vizinho, mas fiquei com receio de estar dormindo e acordar a vizinhança com gritos na madrugada. Bem, ninguém apareceu nem ali no galpão e nem na porta do apartamento. Os sons do lugar pareciam aqueles de transformadores de energia ligados, como que um ruído bem baixo e permanente, e mais nada.

Aquela viagem já estava mais do que interessante e eu não sentia mais nem vontade de querer dormir. Queria mesmo é estar ali tentando descobrir o que podia ser tudo aquilo. Depois de me acostumar um pouco mais com o lugar decidi explorar aquela ilha, seus painéis e botões. Logo percebi que onde eu pisava, aliás, tudo à minha volta tinha um tipo de piso muito estranho que lembrava aquelas placas de aço cheias furos redondos e onduladas, sempre num tom que alternava entre o preto e o cinza escovado, e que não refletiam a luz. Não havia degraus e sim rampas, muitas. No centro havia algo como uma coluna cilindrica enorme, uns quatro metros de diâmetro, e muito alta que parecia ir além do teto. Mais de perto, notei que as tais luzes vinham de números e letras, que formavam diferentes sequências, e que estava em todos os painéis. Aquilo me parecia uma área de controle sem nenhum operador, tudo funcionava sozinho. Numa de minhas andanças entorno daqueles painéis me deparei com umas colunas de mais ou menos um metro e meio de altura e no alto delas um conjunto luzes, botões e sinais. Não havia nada escrito, bem, quer dizer, nada que eu entendesse pelo menos, e nada do tipo "não toque em nada", ri com meus botões... Arteiro como sempre, toquei no tal painel e um ruído ensurdecedor ecoou por todo o lugar. Gelei!!! Fiz besteira, pensei. O barulho logo silenciou. Me abaixei e procurei para ver se alguém aparecia, enfim, ninguém apareceu, ufa!

Mexi novamente e mais uma vez, e os barulhos foram rolando com tons diferentes. Gostei da brincadeira e comecei a fuçar em tudo por ali até que, por um motivo que não sei dizer e nem me lembro, ativei alguma coisa que fez com que uma luz que vinha do alto daquele galpão e descia exatamente naquele cilindro se intensificasse. Uma luz muito branca que doía meus olhos de tanta luz.

Já bem mais corajoso, me aproximei da tal luz que curiosamente não se comportava como outras luzes que eu conhecia, isto é, aquelas que a gente acende e apaga, etc. Não, aquela não fazia isso, ela se movia de lado, entortava, se curvava, como que feita de muitas luzes individuais, com vida própria. Ora elas formavam a minha imagem, ora mudavam as partes da minha imagem de posição, criando coisas muito diferentes e até divertidas. Fiquei encantado com aquele jogo de luzes e pensei que coisa maravilhosa estava acontecendo comigo naquela noite. Primeiro a parede do meu quarto se mexendo, depois atravesso a parede e cá estou nesse local incrível para logo depois estar com estas luzes lindas, criativas e geniais. Muito encantado, não aguentei e resolvi tocá-las, senti-las. Me aproximei muito devagar e com a coragem meio pronta pra me fazer correr dali, até porque, vai que a coisa toda vira do avesso e degringola.

Ao estender meu braço percebi uma força enorme que me envolvia e me puxava em sua direção. Aquela sensação me fez assustado e buscar opções para escapar dali e voltar para a parede, para a minha cama, enfim, acordar, não sei. Olhei em volta buscando um caminho e além daquelas luzes tudo estava um breu, não se via nada, só mesmo as luzes e aquele cilindro imenso que as jogava para cima ou as trazia de lá, não sei. Sem ter pra onde correr decidi ir adiante, era tudo ou nada.

Um formigamento começou pela minha mão e logo tomou todo o braço. Eu o sentia preso ou seguro por alguém. Daí as luzes envolveram minhas pernas e logo todo o meu corpo formigava. Tentei gritar e minha voz, que ali se parecia com a do Pato Donald, nem saía. Depois de alguns minutos não sentia mais o peso do meu corpo. Parecia que eu estava flutuando, como algo muito leve. A preocupação deu lugar a um prazer indescritível que me tranquilizava - eu estava gostando de tudo aquilo. Me movia livremente em direção às luzes e estas vinham ao meu encontro. Eu sentia meu corpo, mas não o via.

Após algum tempo, aquela euforia e prazer deu lugar a muita tensão e preocupação poque as luzes começaram a mudar cor muito rapidamente, quase que freneticamente. Algo estava acontecendo com aquele lugar porque o ruído que eu causara no início recomeçou a ecoar de maneira ainda mais estridente, e alternando estrondos que pareciam explosões de uma luz intensa e som muito alto.

Uma dessas explosões me acertou em cheio e fui arremessado para cima a uma velocidade incrível, em direção ao teto, só que este nunca chegava, isto é, eu não parava mais de subir e eu estava cada vez mais alto e rápido, quando, de repente, como num abrir de olhos, parei e me vi ali, fitando a parede do meu quarto, a janela, a paineira que ainda balançava ao ritmo do vento e a luz da Lua.

Não sei se acordei de um sonho ou se sonhei acordado. Se saí dali ou nada daquilo tudo não passou de um pesadelo, sonho, estresse... não sei. Tudo aquilo me deixou meio atordoado e tentando entender, olhei pro lado... vixe, vou perder a hora.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A moça e a passagem

Certa manhã eu caminhava sossegado por uma avenida que fica muito perto de onde eu moro. Era bem cedo e o sol demorava a vencer a densa neblina que cobria todo o vale. Um friozinho, ainda que gostoso, mantinha meus pés duros, enrijecidos, parecia que eu tinha cubos de gelo no lugar dos pés. Depois de alguns minutos senti que eles aqueceram e o ritmo já melhorou, pude caminhar com mais desenvoltura. Olhava aquela paisagem toda encoberta, como se eu estivesse andando em meio a nuvens e pensava nas coisas que tinha de fazer durante o dia. Ao cruzar a ponte, percebi que a neblina desceu repentinamente a ponto de enxergar mais nada. Mal se podia dividir entre as águas do rio, a murada da ponte e cidade.

Eu conhecia bem aquele caminho, nunca tinha visto algo como aquilo ali e mesmo estranhando esse fato continuei caminhando. Um pouco mais a frente, ainda na ponte, notei um conjunto de luzes que escapava pela neblina e vinha de um buraco que havia na murada. Fiquei intrigado de novo porque até poucos minutos atrás, aliás, não me lembrava que havia qualquer buraco na murada. Muito estranho. A curiosidade me pegou. Quando me aproximei da murada para tentar localizar de onde vinham as luzes atinei para um fato que me deixou espantado, eu estava sozinho naquele lugar. Não via nem ouvia mais os carros passando, eu não escutava mais as conversas entre outros transeuntes, nada, nenhum barulho. Alguma coisa de muito maluca estava acontecendo naquele momento porque não se ouvia a água correndo no rio, tão pouco qualquer grunhido dos pássaros tão comuns ali, naquela área.

Minha teimosia se juntou a curiosidade e tomado de um pouco de coragem lá fui procurar saber o que estava acontecendo. Apoiando-me na murada, que parecia estar quebrada, enfim, segurando-me onde dava, escorreguei minhas pernas pela passagem com um medo danado de que eu caísse no rio, afinal, até então eu estava em cima da ponte e por sobre um rio, de repente, toquei em chão firme. Foi uma sensação muito estranha. Pensei – Cadê o rio? Meu pé tocou o chão seco e já que eu tinha chegado até ali decidi continuar e seguir aquelas luzes para ver o que de fato havia ali ou o que estava acontecendo. Como eram muitas luzes pensei que podia ser uma cidade ou vilarejo, enfim, não sabia ao certo, mas queria saber.

Depois de vários minutos me vi parado diante de algo que se parecia com uma vila cheia de casinhas, algum comércio e muitas luzes, que vinham das construções porque não tinha luz na rua. Bem, pelo menos não naquela rua em que eu chegara não tinha. Olhei em volta e percebi algumas pessoas conversando, umas falando mais que outras, e ao notarem a minha presença, pararam abruptamente. Um silêncio terrível se fez presente. Se viraram e de maneira muito suspeita, vieram em minha direção. Fiquei imóvel, afinal eu havia seguido as luzes e chegado até ali. Não achava que tinha feito algo de errado, pensei. Uma dúvida me ocorreu - Será que eu deveria estar ali? Parecia que não mesmo, e o pior foi que me tornei um tremendo problema para eles.

Um frio correu pela minha espinha e comecei a ficar com medo, sério, bateu um medão. Pensei – Fiz besteira, será que escapo dessa? Aquele pessoas, além de parecerem muito estranhas, estavam suspeitando que eu fosse aprontar alguma coisa ali, sei lá o quê, nem deu tempo de perguntar. Eles foram logo me cercando e sem que eu pudesse esboçar qualquer reação, começaram a me mandar embora, gesticulando e gritando que eu não deveria estar ali, que ali não era o meu lugar e coisa e tal. O mais curioso desse momento é que eu não entendia as palavras que eles falavam, mas entendia tudo o que eles estavam querendo dizer. Louco isso não! Nem precisava de tradução. A coisa estava cada vez mais quente e eu não tinha a menor ideia de como sair dali. Eu olhava para trás e não via a ponte, rio, nada, tudo era muito estranho e diferente do lugar que eu imaginava estar. Esse outro lugar, aparentemente, era muito longe de onde deveria estar ou estava antes. Mesmo sem entender lufas o que aquele povo dizia, senti que ia me dar mal.

Isso já estava quase acontecendo quando, num momento que não sei precisar. Sei lá, acho que fechei os olhos e quando os abri todos haviam desaparecido. No lugar deles uma moça muito bonita, veio em minha direção. Ela parecia um anjo, tinha os olhos muito verdes, um olhar manso, delicado, meigo e um sorriso que me acalmava. Sem pronunciar uma palavra se quer, ela pegou minha mão e foi me levando pelos caminhos ainda encobertos pela neblina em direção à ponte.

Durante o trajeto, pensei em perguntar-lhe sobre o que tinha acontecido e mais, quem era ela e o por que dela estar me ajudando. Acabei não fazendo tais perguntas, e mesmo assim, senti como se ela me respondesse, dizendo que embora eu não devesse estar ali nós iríamos nos encontrar de qualquer maneira. Essa frase me deixou ainda mais confuso.

Chegamos na ponte, segurei a mão dela, me despedi e uma tristeza me abateu. Não queria ir embora, mas ela insistiu que eu partisse. Pus-me a subir pelo caminho de volta e quando olhei para trás – para a despedida, também não havia mais nada. Ela tinha sumido, aliás, tudo tinha desaparecido e mais, parecia que nada havia acontecido. O rio límpido correndo por sob a ponte, as pessoas caminhando, o sol brilhava forte e nem sinal da neblina que encobrira tudo à minha volta. Todos os ruídos e sons voltaram de estalo. Diante de tal sensação e muitas dúvidas, eu me perguntava: Onde eu tinha estado? O que havia acontecido comigo? Quem eram aquelas pessoas e quem era ela? Muitas lembranças daquele acontecimento que ficaram marcadas desde o medo que senti até o carinhoso olhar daquela moça que cuidou de mim.

Saí muitas outras manhãs para caminhar por aquela ponte e fiquei parado ali por horas, tentando entender e achar outra vez a passagem. No interior costumam dizer que é possível se pegar um saci com uma peneira no redemoinho de vento, que as rajadas de vento trazem presságios e o balançar sincronizado das árvores pode mostrar caminhos misteriosos, portais do tempo, passagens, enfim, caminhos capazes de nos levar para outras dimensões.

Não sei quanto tempo levará, mas outro dia com muita neblina há de vir e talvez eu seja levado a reencontrar o caminho para aquela moça linda, com olhos verdes e que tanto sonho até hoje.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A viagem que começou agora

Mudamos o tempo todo de lugar ou, pelo menos, do momento em que estamos no mesmo lugar. Às vezes fico imaginando como seria interessante desaparecer do lugar onde me encontro e aparecer num outro melhor, como no filme Jornada nas Estrelas ou em outros em que grandes portais se abrem para diferentes lugares e dimensões, filmes como Star Gate 1 e Deep Space Nine. Num estalar de dedos, ou melhor, apertando um botão você poderia ter seu corpo desmaterializado num lugar e rematerializado em outro, conforme o destino proposto. Há filmes em que as personagens entram andando de um lado do portal de gelatina e saem no meio de uma exuberante selva com seus phasers prontos para serem disparados porque, claro, sempre há um inimigo à espreita, coisa de filme.

Quem não gostaria de literalmente sumir de um lugar chato e incômodo para ir a outro de seu agrado, num piscar de olhos? Eu gostaria e muito, aliás, estava aqui pensando e já escolhi alguns lugares para onde iria imediatamente. Imagine – é finalzinho de tarde, você querendo tomar uma cerveja, aperta um botão que aciona uma maquininha que faz aquele barulhinho, várias luzes brilham e shazan! Você está junto de sua turma ali no bar "Distinta Freguesia", um dos preferidos da minha turma. Claro, há outras formas de viagem também, mas esta seria bem rápida, não!

Na série "Túnel do Tempo", da década de 60, dois viajantes vão de época em época, descobrindo coisas, mexendo com a história e sempre tentando voltar pra casa. No filme "Contato", a atriz Jodie Foster está viajando em uma máquina criada conforme as orientações recebidas de povos avançados do universo para que a humanidade conheça o universo, outros povos, enfim, no final dá tudo errado e ninguém acredita nela, afinal, ela ficou só 18 segundos na máquina. A base científica de todos esses filmes e dos artefatos, mecanismos e máquinas imaginadas, inclusive as citadas e outras, são teorias desenvolvidas por eminentes cientistas que ao longo de várias épocas, entre eles Albert Einstein, veem demonstrando que o universo guarda importantes lições sobre caminhos, passagens, "buracos de minhoca" e dobras espaciais para serem descobertas, desbravadas e curtidas pelas gerações vindouras.

Considerando que a brincadeira e arte sempre imitaram a vida, talvez um dia desses seja a vida que estará imitando a brincadeira e a arte, e meus bisnetos ou ainda tataranetos estarão cruzando o universo à velocidade da luz, saltando as dobras espaciais, como quem pula a amarelinha. Seja como for, acredito que cedo ou tarde isso vai se tornar realidade, inclusive porque essa possibilidade já foi prevista. Enquanto não conseguimos, como diria o Capitão Kirk – ir onde nenhum homem jamais esteve – vou viajando a lugares maravilhosos, alguns inéditos pra mim e outros que considero uma gostosa segunda chance para aprender, experimentar, fazer contatos e, na volta pra casa, recordar, viajar no imaginário, sonhar e contar a história daquela viagem.

Acredito que no momento em que usamos nossa imaginação experimentamos viagens, novas experiências e sensações que podem ser reinventadas a todo instante para, sempre que possível, contadas em rodas de prosa, na mesa do bar ou guardadas na lembrança e curtidas sozinho no canto. Bem, optei por escrevê-las na forma pequenos contos, como histórias de viagens um tanto estranhas e fantásticas que experimentei e desejo de revivê-las contando-as. As primeiras são “A moça e a vila” e “Depois da parede”.

Não sei quanto tempo levarei para contar outras, mas como ouvi de um bom amigo – o tempo disse pro tempo, quanto tempo o tempo tinha, este respondeu que com tempo sempre haveria tempo. Assim, vou sem pressa, no meu tempo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Rolimãs na esquina das ruas Albion e Guaricanga.

A aventura de dirigir vem comigo desde muito tempo. Tive uma infância ótima com muito tempo de brincar na rua sem qualquer tipo de perigo, exceto quebrar uma janela ou um dente, enfim, desde pequeno gosto de brincar, principalmente de bicicleta, tico-tico, triciclo e carrinhos de rolimãs, entre outros, pois minha vida foi marcada por muitas viagens sobre rodas. Tive até um carrinho a pedal, muito bacana, que eu e meu irmão Marinho (o de cabelo claro na foto abaixo) dividíamos.

De rolimã era uma farra, descíamos a Rua Albion, antiga rota para o interior do Estado, até a criação das marginais, e virávamos na esquina da Rua Guaricanga, tudo isso na Lapa, bairro da zona oeste de São Paulo que eu sempre amei e onde passei toda a minha infância, e também onde ficava, ali, bem na esquina, o Empório São Jorge, um empório daqueles que vendiam arroz, feijão, batata, tudo a granel, naquelas sacas de tecido, bem como leite em garrafa de vidro, que chegavam cedinho naqueles engradados de metal. Lá tinha uma vitrine de doces maravilhosos e eu pegava sem meu avô perceber, quer dizer, eu achava que ele não sabia, o "alpino" e o "doce de abóbora". Era o empório do meu avô, Mario Ismael Assan, aliás, o nome dele original era Amar Ismael Assan, e minha avó, Albina Gir Assan. Que saudade!

Bem, aquela curva era radical porque o poste de luz ficava bem depois da esquina, do lado esquerdo da curva, e logo depois, poucos metros à frente, ficava a escada da casa do vizinho. Ali na Lapa ainda têm muitas dessas casas, cujas portas ficam muito mais alta que o nível da rua, por medo das enxurradas, talvez, que desciam lá da Rua Barão de Jundiaí e se encontravam com outras águas vindas da descida Albion.

O objetivo das nossas descidas era fazer a curva sem nos arrebentar no poste ou na escada, que ocupava metade da calçada, bem como não se perder da calçada e ir parar na rua, correndo o risco de ser atropelado, ou de atropelar algum cliente do meu avô ou algum vizinho, afinal, eu morava ali na Rua Guaricanga, número 345, bem no meio do quarteirão, aliás, essa rua tinha seis quarteirões de comprimento e o nosso era o único totalmente plano. Palco de peladas e muitas outras brincadeiras, toda a criançada da rua vinha se encontrar ali.

Quase sempre conseguíamos fazer aquela curva, mas muitas vezes os cotovelos e joelhos sofriam pela inabilidade. Os ralados doíam, mas era tudo de bom, RS! Esqueci, um pouco antes da curva, ainda na Rua Albion, ficava a escada para a porta de entrada da casa da minha avó. Quantos obstáculos nós tínhamos que considerar naquele rali para vencer a esquina. Normalmente estávamos em dupla, isto é, um ficava na esquina e dava o sinal para que o outro descesse. Dado o sinal o problema era parar caso, durante a descida, algo surgisse e precisássemos brecar... Já era! O breque era no pé mesmo, ou melhor, no “bamba” e não tinha outro jeito, o jeito era conseguir ralando a sola do tênis ou se arrebentar no poste, as vezes os dois.

Era uma delícia. Puxa, faz um tempão que não ando de carrinho de rolimãs. Depois vieram os skates, mas eu já estava com outras rodinhas nos pés. Hoje em dia divido meu tempo entre as rodinhas motorizadas e no pedal. Bem, esta última já vem comigo também há bastante tempo, mas essa história outro dia eu conto.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Pai, existência e legado.

Desde pouco tempo antes da morte do meu pai, penso na sua existência e legado, e como isso fez com que eu mudasse meu comportamento em relação aos meus filhos, mãe, irmãos e a própria vida. Muito longe de ter sido um mau filho, do meu lado, ou um mau pai, do lado dele – muito pelo contrário – éramos bons amigos, só que brigávamos sempre pelos mesmos motivos. Nossas diferenças de opinião combinadas com nossa natureza ou ancestralidade italiana tornava nossa relação um caso de combustão automática.

Ao pensar em tempos muito antes daqueles, lembro que desde adolescente, eu e meu pai tínhamos um tipo de relação que oscilava entre o confronto e a união. Por muito pouco surgia uma discussão que acabava de maneira crítica – se porque o meu cabelo estava comprido eu deveria cortá-lo. Se porque ele ficava se metendo com o meu cabelo comprido – Eu não gostava do modo como ele conduzia as conversas depois que chegava da rua. O efeito do álcool incomodava demais a mim, minha mãe e irmãos, mas eu acabava recebendo o maior impacto disso porque sempre me intrometia entre eles, ele e ela, durante suas discussões.

Amava meu pai, mas vivia em péd de guerra com ele o tempo todo. Esse sentimento contraditório nos acompanhou por muitos anos. E mesmo depois de eu estar casado, com meus filhos e circulando pelas muitas regiões do Estado de São Paulo, onde trabalhava pelo SESC, exercendo aquela profissão que ele era categoricamente contra, ainda assim nós nos encontrávamos sempre entre momentos de guerra e paz. Os netos em casa a exigir ações mais abertas de todos acabaram por mexer com o comportamento do meu pai, lapidando-o e tornando-o mais suscetível aos novos tempos, jeitos de agir, comportamentos mais diferenciados.

Ao final e ao cabo, eu e meu pai nos entendemos. A doença que lhe tomou o corpo precipitou o nosso entendimento. De meu lado, a ausência possível dele e minha noção de rebeldia ou de frustração por antigas divergências mal resolvidas perdeu força e deu lugar a um desejo enorme de conciliação. O último entrevero entre nós, e mais radical, abriu uma vala tão funda e larga que só a parada imediata e o recuo de ambos possibilitou consertar o estrago feito.

Mas o tempo foi determinante e nos ajudou a recuar, nos fazendo sentar à mesa para acertar nossas arestas, as diferenças, conhecer um pouco mais sobre nossos pontos de vista, nossos projetos, ideias e visões de mundo, bem como as visões um do outro e vice-versa. Acho que isso aconteceu pouco antes da Páscoa de 2005, e daquele momento em diante, eu e meu pai abandonamos as armas e nos encontramos definitivamente em paz um com o outro.

A sensação de alívio e prazer de ambos os lados só foram escurecidas pelo agravamento dos sintomas que as doenças e outros problemas que ele tinha e que fizeram com que sua vida se esvaísse muito mais rapidamente a cada momento. Pouco tempo antes de sua morte, já no leito do hospital, um desabafo me fez cair na real e amadurecer, disse ele com o olhar vidrado e triste – João, estou cansado.

Minhas orações tornaram-se mais frequentes e nossas conversas mais intensas com ele, e de outro lado, indiretamente, comecei a preparar os outros para algo que estava certo ia acontecer e era necessário, pois meu pai precisava descansar. Era preciso entender e aceitar que ele precisava seguir adiante, sair daquele sofrimento que o mutilava, impedia, dividia, separava. Por mais unidos que estivéssemos a hora de nos separarmos estava chegando.

Sua passagem se deu em novembro de 2005, dia 7, e sua partida deixou para mim, e tenho certeza que para a minha mãe, irmãos, netos e para aqueles que o conheceram também, para além da tristeza da separação, um legado de amizade, respeito, honestidade e uma determinação enorme de viver.

Pensar nele e reverenciá-lo é honrar sua existência e legado. É por em prática na vida com meus filhos tudo aquilo que aprendi e depreendi durante o tempo em que convivi com o meu pai e com sua lembrança.

Salve meu pai.