quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A moça e a passagem

Certa manhã eu caminhava sossegado por uma avenida que fica muito perto de onde eu moro. Era bem cedo e o sol demorava a vencer a densa neblina que cobria todo o vale. Um friozinho, ainda que gostoso, mantinha meus pés duros, enrijecidos, parecia que eu tinha cubos de gelo no lugar dos pés. Depois de alguns minutos senti que eles aqueceram e o ritmo já melhorou, pude caminhar com mais desenvoltura. Olhava aquela paisagem toda encoberta, como se eu estivesse andando em meio a nuvens e pensava nas coisas que tinha de fazer durante o dia. Ao cruzar a ponte, percebi que a neblina desceu repentinamente a ponto de enxergar mais nada. Mal se podia dividir entre as águas do rio, a murada da ponte e cidade.

Eu conhecia bem aquele caminho, nunca tinha visto algo como aquilo ali e mesmo estranhando esse fato continuei caminhando. Um pouco mais a frente, ainda na ponte, notei um conjunto de luzes que escapava pela neblina e vinha de um buraco que havia na murada. Fiquei intrigado de novo porque até poucos minutos atrás, aliás, não me lembrava que havia qualquer buraco na murada. Muito estranho. A curiosidade me pegou. Quando me aproximei da murada para tentar localizar de onde vinham as luzes atinei para um fato que me deixou espantado, eu estava sozinho naquele lugar. Não via nem ouvia mais os carros passando, eu não escutava mais as conversas entre outros transeuntes, nada, nenhum barulho. Alguma coisa de muito maluca estava acontecendo naquele momento porque não se ouvia a água correndo no rio, tão pouco qualquer grunhido dos pássaros tão comuns ali, naquela área.

Minha teimosia se juntou a curiosidade e tomado de um pouco de coragem lá fui procurar saber o que estava acontecendo. Apoiando-me na murada, que parecia estar quebrada, enfim, segurando-me onde dava, escorreguei minhas pernas pela passagem com um medo danado de que eu caísse no rio, afinal, até então eu estava em cima da ponte e por sobre um rio, de repente, toquei em chão firme. Foi uma sensação muito estranha. Pensei – Cadê o rio? Meu pé tocou o chão seco e já que eu tinha chegado até ali decidi continuar e seguir aquelas luzes para ver o que de fato havia ali ou o que estava acontecendo. Como eram muitas luzes pensei que podia ser uma cidade ou vilarejo, enfim, não sabia ao certo, mas queria saber.

Depois de vários minutos me vi parado diante de algo que se parecia com uma vila cheia de casinhas, algum comércio e muitas luzes, que vinham das construções porque não tinha luz na rua. Bem, pelo menos não naquela rua em que eu chegara não tinha. Olhei em volta e percebi algumas pessoas conversando, umas falando mais que outras, e ao notarem a minha presença, pararam abruptamente. Um silêncio terrível se fez presente. Se viraram e de maneira muito suspeita, vieram em minha direção. Fiquei imóvel, afinal eu havia seguido as luzes e chegado até ali. Não achava que tinha feito algo de errado, pensei. Uma dúvida me ocorreu - Será que eu deveria estar ali? Parecia que não mesmo, e o pior foi que me tornei um tremendo problema para eles.

Um frio correu pela minha espinha e comecei a ficar com medo, sério, bateu um medão. Pensei – Fiz besteira, será que escapo dessa? Aquele pessoas, além de parecerem muito estranhas, estavam suspeitando que eu fosse aprontar alguma coisa ali, sei lá o quê, nem deu tempo de perguntar. Eles foram logo me cercando e sem que eu pudesse esboçar qualquer reação, começaram a me mandar embora, gesticulando e gritando que eu não deveria estar ali, que ali não era o meu lugar e coisa e tal. O mais curioso desse momento é que eu não entendia as palavras que eles falavam, mas entendia tudo o que eles estavam querendo dizer. Louco isso não! Nem precisava de tradução. A coisa estava cada vez mais quente e eu não tinha a menor ideia de como sair dali. Eu olhava para trás e não via a ponte, rio, nada, tudo era muito estranho e diferente do lugar que eu imaginava estar. Esse outro lugar, aparentemente, era muito longe de onde deveria estar ou estava antes. Mesmo sem entender lufas o que aquele povo dizia, senti que ia me dar mal.

Isso já estava quase acontecendo quando, num momento que não sei precisar. Sei lá, acho que fechei os olhos e quando os abri todos haviam desaparecido. No lugar deles uma moça muito bonita, veio em minha direção. Ela parecia um anjo, tinha os olhos muito verdes, um olhar manso, delicado, meigo e um sorriso que me acalmava. Sem pronunciar uma palavra se quer, ela pegou minha mão e foi me levando pelos caminhos ainda encobertos pela neblina em direção à ponte.

Durante o trajeto, pensei em perguntar-lhe sobre o que tinha acontecido e mais, quem era ela e o por que dela estar me ajudando. Acabei não fazendo tais perguntas, e mesmo assim, senti como se ela me respondesse, dizendo que embora eu não devesse estar ali nós iríamos nos encontrar de qualquer maneira. Essa frase me deixou ainda mais confuso.

Chegamos na ponte, segurei a mão dela, me despedi e uma tristeza me abateu. Não queria ir embora, mas ela insistiu que eu partisse. Pus-me a subir pelo caminho de volta e quando olhei para trás – para a despedida, também não havia mais nada. Ela tinha sumido, aliás, tudo tinha desaparecido e mais, parecia que nada havia acontecido. O rio límpido correndo por sob a ponte, as pessoas caminhando, o sol brilhava forte e nem sinal da neblina que encobrira tudo à minha volta. Todos os ruídos e sons voltaram de estalo. Diante de tal sensação e muitas dúvidas, eu me perguntava: Onde eu tinha estado? O que havia acontecido comigo? Quem eram aquelas pessoas e quem era ela? Muitas lembranças daquele acontecimento que ficaram marcadas desde o medo que senti até o carinhoso olhar daquela moça que cuidou de mim.

Saí muitas outras manhãs para caminhar por aquela ponte e fiquei parado ali por horas, tentando entender e achar outra vez a passagem. No interior costumam dizer que é possível se pegar um saci com uma peneira no redemoinho de vento, que as rajadas de vento trazem presságios e o balançar sincronizado das árvores pode mostrar caminhos misteriosos, portais do tempo, passagens, enfim, caminhos capazes de nos levar para outras dimensões.

Não sei quanto tempo levará, mas outro dia com muita neblina há de vir e talvez eu seja levado a reencontrar o caminho para aquela moça linda, com olhos verdes e que tanto sonho até hoje.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que doido João...
Muito bem escrito!
Parece sonho mas parece realidade, essa "confusão" toda se é ou não é que deixa o encantamento na escrita...
Adorei!
beijão
Simone

Malu Oliveira disse...

João, gosto muito de seu jeito delicado de escrever. Este texto está especialmente sutil. A linha entre sonho e realidade quase não existe e isso teve grande importância na narrativa pois ambas as situações são perfeitamente possíveis. Eu aceitaria as duas hipóteses. Mas, acredito que isso não importa de fato. Parabéns!
Beijo
Malu